RELATOS DE UM CONFINADO DE RODINHAS
“Nada do que foi será; De novo do jeito que já foi um dia. Tudo passa, tudo sempre passará.”

 

Hoje acordei cantando esta música e, logo em seguida, me deu vontade de escrever sobre esta experiência surreal que estamos vivenciando, digna de uma tela assinada por Dali ou de um roteiro “Hollywoodiano” de suspense/ficção.

Em um processo (quase) terapêutico, compartilharei emoções e relatos sobre os impactos da quarentena na minha vida, trazendo, ao fundo, reflexões que considero pertinentes. Mas dividi o texto em duas partes, pois não consigo ser conciso em assuntos complexos como este. Neste, falo sobre a mudança da minha rotina nos últimos meses. No outro, trarei percepções que ultrapassam os muros do nosso micro-universo e também reproduzirei implicitamente um posicionamento político-ideológico, além de outras impressões pessoais a respeito do atual momento.

Então, vamos lá…

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Provavelmente, algumas pessoas pensam que a vida de um cadeirante não foi (e não está sendo) afetada pelo Coronavírus, afinal, “ele já não sai muito de casa mesmo, né?” No meu caso, afirmo sem hesitar que esta suposição está completamente errada, visto que a dinâmica dos meus dias foi alterada significativamente.

Por pertencer ao grupo de risco – não por causa da deficiência, e sim por conta da baixa capacidade respiratória – precisei interromper diversos compromissos, inclusive os trabalhos voluntários, como as palestras e as gravações do programa ‘Acesso Especial’ na Rádio Cultura Municipal de Amparo/SP, além das sessões de fisioterapia na clínica (hoje, a fisioterapeuta vem até a mim). Sinceramente, ainda não consigo prever quando retomarei as atividades externas. Ponderando minha vulnerabilidade, em relação às doenças pulmonares, prefiro não arriscar.

É exagero? – Não!

Histeria? “Medinho de sereno”? – Também não!

É precaução, cuidado, responsabilidade e, sobretudo, amor à vida!

As únicas vezes em que ousei ultrapassar os portões de casa, desde o início do distanciamento social, foi para dar continuidade ao meu tratamento com o Spinraza, cumprir o agendamento de uma perícia médica (ambos os compromissos em Sampa) e acompanhar minha filha até o dentista. Nessa terceira ocasião, fiquei dentro da Kombi o tempo todo, com os vidros fechados e de máscara. Considerando o marasmo vivido nesses últimos cinco meses, esses passeios foram verdadeiras aventuras radicais, guardadas as devidas proporções! E ainda sobre o nosso confinamento… visando evitar as saídas do meu pai (ele mora conosco), mudamos alguns hábitos, entre eles, a forma de pagamento das contas e as compras de supermercado, que atualmente são feitas por meio da internet.

Na verdade, não é fácil convencer o ‘seu’ Antonio a ficar em casa! Inclusive, recentemente ele retomou, contra a vontade da família, a sua atividade de marchand ao ar livre, um trabalho iniciado em meados da década de 90, expondo e vendendo meus quadros em uma avenida local.

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Outra mudança drástica, em razão da chegada desse vírus, está sendo a ausência de visitas de parentes e amigos, que aconteciam especialmente nos fins de semana. Confesso que esta tem sido a pior parte!

“Há tanta vida lá fora; Aqui dentro sempre… Como uma onda no mar.”
Nosso dia-a-dia, de segunda a sexta, foi muito transformado, principalmente em virtude dos estudos da Lavínia, que, desde março, estão acontecendo via internet. O isolamento social nos forçou a explorar a criatividade, a adaptar nossos horários e a gastar um dinheiro que não havíamos previsto. Precisamos fazer um upgrade em um computador antigo e esquecido num armário, que agora é de uso exclusivo de nossa pequena nerd, para estudar e para brincar.
No início da manhã, enquanto pai e filha ainda estão nos braços de Morfeu, mamãe Elis está no pc trabalhando remotamente. Depois, ela volta para o quarto, nos acorda com um beijo e, após cumprir todo aquele ritual que faz parte das nossas manhãs, me tira da cama com a ajuda do Alfredão – meu inseparável guincho de transferência. Enquanto isso, nossa filhota faz as tarefas escolares que não requerem nosso acompanhamento e ajuda, geralmente sobre a cama do casal… e, às vezes, até em cima do papai, transformando-o numa carteira escolar.

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Ah! À essa altura, os três – meu “velho”, meu love e minha sapeca – já tomaram café, exatamente nesta ordem. Eu sempre bebo um “pingado” logo que acordo, junto com meu remédio de azia. O almoço, preparado pela minha amada esposa, agora é servido um pouco mais tarde, bem como o jantar.
O período vespertino é inteiramente reservado ao ensino remoto da Lavínia. Eu fico observando as aulas online – atividades síncronas -, auxiliando-a quando necessário e esforçando-me para não interferir. Geralmente, nesse horário, Elis está fazendo alguma outra coisa ou descansando, merecidamente por sinal.
Nós dois acompanhamos as tarefas mais complexas – atividades assíncronas – que são disponibilizadas em uma plataforma, porém, as dividimos da seguinte forma: português e inglês são de minha responsabilidade e matemática fica a cargo da mamãe, pois esta é a sua especialidade.
Graças ao empenho dos educadores que compõem a equipe do Colégio Villa Lobos, não houve interrupção de sua aprendizagem, apesar dos desafios e dos obstáculos inerentes ao ensino à distância. Porém, observamos nela uma frequente desatenção, constantes desvios de concentração e, ultimamente, uma aparente desmotivação. Creio que essas dificuldades estão sendo comuns para a maioria das crianças que ainda não retornaram às aulas presenciais, e isso é perfeitamente compreensível, pois, há quase seis meses estão longe da escola e dos amigos e os encontros virtuais não se comparam ao calor humano da presença física. O abraço, por exemplo, é um gesto insubstituível!

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Quando chega à noite, o primeiro a ir para a cama é meu pai, acompanhado da Zoe, a mais nova integrante da família – aliás, a sua chegada foi uma das melhores coisas que aconteceram nesse ano atípico. Sempre após às 23h, depois de Lavínia jogar Roblox – pois ninguém é de ferro -, nós três vamos para o quarto e, após a baixinha pegar no sono, eu e Elis assistimos um episódio de alguma série (estamos terminando a 2ª temporada de “The Leftovers”).

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E nossa menina continua nos surpreendendo! Recentemente, presenciamos uma manifestação sua carregada de afeto, consideração e lucidez. Enquanto o governo estadual não estabelece regras claras e seguras sobre o retorno das aulas presenciais, e nós, pais, nos sentimos cada vez mais perdidos diante de tantas informações contraditórias, Lalá já tomou sua decisão. Outro dia ela afirmou, categoricamente:
Papai, eu não quero voltar para a escola em setembro e nem em outubro, pois posso trazer o vírus pra casa, e o senhor não pode pegar Covid porque é do grupo de risco. E eu não quero que o senhor fique doente!
Esta é ou não é uma prova de que cuidar e se preocupar são os maiores sinais de amor?!

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Durante esse tempo de reclusão involuntária, aconteceram três aniversários no formato #fiqueemcasa, e pelo jeito, o quarto também será assim.
Em março, o niver de 10 anos de nossa filha foi atípico, pois, pela primeira vez em uma década, não houve uma festa tradicional. Fizemos uma reunião íntima sem a presença física de amigos e parentes, com direito à uma singela e delicada decoração de panda. Várias pessoas participaram virtualmente da comemoração e até cantaram “parabéns pra você”, só não foi possível oferecer-lhes um pedaço de bolo. O mais interessante é que, no final, ela nos disse que foi um dos melhores aniversários da sua vida! Criança é uma benção mesmo!

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Em junho foi a vez do meu pai assoprar as velinhas. Um salve para os seus 77 anos de jornada terrestre! Em agosto completei 53 voltas ao redor do sol. Se não fosse pela minha filha (que insistiu para providenciarmos um bolo) e pelas mensagens e ligações recebidas, eu nem teria lembrado da data. E em outubro minha esposa completará mais uma primavera. Não estou autorizado a revelar a sua idade… hahaha.
E a saúde mental? Vai bem, obrigado…
Esta é a nossa atual preocupação.
Já conhecemos todas as medidas necessárias de cuidado e prevenção ao Coronavírus, portanto, nos concentramos hoje nesta questão, em especial com a Lavínia e com o meu pai. Estamos tentando ajudá-los a atravessar essa complexa fase, conversando, facilitando seus entendimentos e os afastando do “bombardeamento” de notícias negativas.
No caso do ‘seu’ Antonio, isso é muito mais complicado, pois ele tem dificuldade em compreender a situação. Aliás, não só ele, pois esta experiência é inédita pra todo mundo e realmente difícil de ser assimilada. Outro fato que acaba atrapalhando é que meu “velho” não faz nada além de assistir TV, que acaba sendo seu único meio de informação e entretenimento. É por isso que entendo a sua necessidade emocional de ir na avenida quase diariamente.
Já a Lavínia tem várias distrações, que se intercalam entre desenhos, pinturas, culinária, brincadeiras tradicionais e outras criativas que inventamos, além de atividades e desafios propostos pelo Grupo dos Escoteiros ‘Portal das Águas’, através de reuniões virtuais. Vale salientar que a arte tem sido uma grande aliada durante esses tempos aparentemente sombrios.
Tem horas que ela se lambuza fazendo Slimes, outras, cria miniaturas fofinhas de Paper Squishy e, ultimamente, se diverte pintando camisetas na técnica Tie-Dye. Mas não posso omitir que o celular também ocupa parte do seu dia-a-dia, e acaba sendo uma alternativa (a única, atualmente) para viabilizar os contatos e as interações com as amigas.

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Elisângela sempre foi caseira, o contrário de mim. Ela ama curtir o seu lar-doce-lar, inclusive nos finais de semana. Entre “reuniões em bares” e “reuniões em casa”, ela geralmente vota na segunda alternativa. Já eu… Devido a esta sua característica, ela não está sendo impactada tanto pelo confinamento, pelo menos não emocionalmente.
Agora falando de mim… Precisei me adaptar e criar recursos – internos e externos – para manter a sanidade e serenidade. Uma das soluções encontradas por mim – e incentivadas por amigos e principalmente pela minha musa – foi a criação das lives “MANIFESTA!”, transmitidas semanalmente desde maio a partir do meu computador, que precisou ser adaptado. São entrevistas com convidados que abordam os mais diversos temas e reflexões, no mesmo formato do programa que apresento há mais de 12 anos na Rádio Cultura.

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E o que podemos extrair de positivo durante a travessia dessa tempestade? Quase tudo! Para nós quatro (ops… nós cinco), a melhor parte desse período está diretamente ligada à nossa conexão, perceptível em várias ocasiões do dia. Evidentemente que nem tudo é festa e alegria. Vivemos igualmente momentos tensos, com discussões acirradas. Mas, no fim, sempre chegamos a um consenso e nos encontramos em nossas divergências, retornando ao clima harmônico e de união.

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Para finalizar, usarei aquela velha frase-clichê, que nunca teve um significado tão verdadeiro como nos dias atuais: FAMÍLIA É TUDO!

Até o próximo texto…




A vida é da cor que a gente a pinta.